Podemos falar de uma moralidade baseada na Bíblia?

[su_note note_color=”#9cc2e5″]Artigo escrito pelo Reverendo Dr. John Shepherd para The Melbourne Anglican, publicado no Anglican Episcopal World, nº123, 2006. Tradução de Joaquim de S. Campos Neto.[/su_note]

Um fenômeno excepcional da fé cristã é que Jesus nunca escreveu nada que tenha chegado até nós como um documento reconhecido. É dito que, em uma ocasião apenas ele escreveu algo mas que foi na areia, e o vento desmanchou.

O que nós temos na verdade nos livros do Novo Testamento são relatos do impacto que Jesus provocou nos seus seguidores e as tentativas da igreja primitiva de colocar esse impacto do modo mais efetivo possível dentro do contexto do seu tempo e da sua cultura.

A partir desses primeiros textos é possível identificar os princípios bíblicos essenciais que afetam as nossas relações com os outros e nos fornecem a base para desenvolvermos uma moral cristã ou posição ética.

Primeiro: amor ao nosso próximo, o qual insiste que tratemos a todos com compaixão, respeito e cuidado. Os mesmos compaixão, respeito e cuidado com os quais gostaríamos de sermos tratados. Nós nos preocupamos com o melhor para os outros, independente de como isso irá nos afetar depois.

Segundo: perdão e misericórdia, sem os quais nenhum relacionamento de amor e confiança pode progredir.

Terceiro: libertação de regras, leis e convenções sociais irracionais que violam a justiça, a integridade e a honestidade, e que diminuem a auto-estima e a liberdade das pessoas.

É isso o que a bíblia ensina; se queremos definir uma moralidade bíblica fundamental, é isso que devemos afirmar.

Tendo isso em mente, nós podemos avaliar com sabedoria a importância de textos isolados que contrariem o espírito desses princípios fundamentais. E podemos fazer isso sabendo que temos o apoio de São Paulo.

Ele escreveu: “Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra.” (Romanos 7,6)

Qual seja, a velha lei é substituída por um novo fenômeno: a imagem de Cristo formada dentro de nós pelo poder do espírito. Inspirados pelo exemplo de Jesus e fortalecidos pelo espírito de Deus dentro de nós, podemos alcançar um novo discernimento e uma compreensão mais profunda de como implementar o amor de Deus no nosso tempo, assim como os primeiros cristãos o fizeram em seu tempo.

Por causa dessa compreensão mais profunda nós abandonamos o modo antigo de pena de morte para adultério (Deuteronômio 22) e para a desobediência aos pais (Deuteronômio 21). Nós não obrigamos o homem a casar com a viúva do seu falecido irmão (Deuteronômio 25) e nem impomos a penalidade, de morte por apedrejamento, a quem deixa de fazê-lo. Também não mais exigimos que os escravos se submetam aos seus donos, nem que as mulheres se submetam aos seus maridos ou aos homens em geral.

Em 1940 os Arcebispos de Cantuária e de York pela primeira vez afirmaram que não havia nenhum problema das mulheres não usarem chapéus dentro da igreja, a despeito de Paulo e a Primeira Epístola aos Coríntios.

Nós permitimos que divorciados se casem novamente. Ordenamos mulheres como sacerdotes e muitas dioceses da Comunhão Anglicana as ordenam ao episcopado. Permitimos a ordenação de divorciados.

Tudo isso é possível porque vivemos na liberdade que Cristo nos trouxe e na vida de amor que os Evangelhos proclamam. Devemos estar livres para amarmos e nos afeiçoarmos dentro da nossa cultura, como Paulo fazia no contexto da sua.

Paulo advogava o abandono das leis relativas à comida, o não mais observar o sábado e também deixar de lado a circuncisão; via como irracional considerar isso tudo como sinais necessários de fé, em vista do imperativo da expansão dos Evangelhos. Para ele, os Evangelhos eram liberdade e ele lutou por isso em Roma e na Galácia, com pessoas que tinham dificuldade de entender todas as implicações de uma fé para a qual o amor, a compaixão, o respeito e a justiça não devem ter limites.

Alguns trechos de textos bíblicos, vistos sem a necessária atenção aos princípios fundamentais que escoram a fé cristã, podem ser entendidos como sendo tolerantes à injustiça, à subserviência, à rejeição, à descriminação e à escravidão. Por exemplo, existe muito anti-semitismo em Mateus e João.

Passagens isoladas da Bíblia, consideradas sem referência ao que é fundamental ao conjunto, podem induzir a erros.

É consistente com a compaixão e com o amor do ensinamento bíblico, e também com a libertação da injustiça e da discriminação que a nova vida do espírito oferece, afirmar a igualdade para todos em Cristo. Este é o princípio fundamental que nos servirá de guia para uma apreciação bem informada, esclarecida e justa da afirmação racial, dos lugares iguais de homens e mulheres na igreja e na sociedade, dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, responsabilidade societária e assim por diante.

Acreditamos que a igreja foi criada para representar o amor e a caridade de Deus. Paulo afirma que nós estamos dispensados de qualquer regra que degrade ou bloqueie o desenvolvimento integral da natureza humana. Ele nos estimula a servir a Deus de um modo novo.

Graças a São Paulo, e ao seu exemplo de estender o grau de aceitação e de generosidade de Deus a uma extensão nunca pensada anteriormente, nós podemos agora apreciar melhor o quanto o amor de Deus pode moldar as nossas vidas e como nós podemos oferecer compaixão e justiça para todos.