Relatório final dos colóquios anglicanos internacionais sobre a sexualidade humana

[su_note note_color=”#9cc2e5″]O texto abaixo é um relatório do diálogo internacional de Bipos Anglicanos convocados em 1999 pelo Arcebispo de Cantuária para se reunirem ao longo de um período de três anos.[/su_note]

Prefácio

Em 1999, ano seguinte ao da Conferência dos Bispos Anglicanos em Lambeth, o Arcebispo da Cantuária convocou um colóquio internacional de bispos para analisarem os tópicos da sexualidade, em geral, e da homossexualidade, em particular. O Arcebispo pediu-me que coordenasse um grupo composto por doze bispos e primazes. Com a contribuição de facilitadores experientes e capazes, durante os três anos seguintes, prosseguimos com a discussão, apesar de algumas mudanças na composição do grupo, durante reuniões anuais mantidas por vários dias enquanto permanecíamos em retiro. Os propósitos das reuniões eram aprofundar nossa compreensão dos pontos de vista uns dos outros, assim como o entendimento das perspectivas culturais e das experiências pessoais/ culturais nas quais esses pontos de vista se fundamentavam.

Alguns participantes não se conheciam previamente. Outros se conheciam apenas por nome e vinham com preconcepções sobre a posição dos colegas sobre o assunto. Tendo os participantes entrado em acordo e tendo-se estruturado o diálogo, imbuídos da disciplina de oração e de adoração, criamos juntos um espaço sagrado, no qual nossas diferenças se tornaram fontes de esclarecimento mútuo e de novas ideias.

Honrando uns aos outros, recusando-nos a atribuir aos outros razões maldosas e valorizando as opiniões daqueles de quem discordávamos, tornamo-nos uma espécie de laboratório no qual enfrentamos nosso assunto. As conversas seguintes foram desafiadoras, mobilizadoras, sempre honestas, diretas e conduzidas com amor e respeito mútuos.

Todos nós nos sentimos enormemente privilegiados por ter tido a oportunidade de participar desse colóquio e divulgamos o relatório que se segue a respeito do que aprendemos, esperando que ele possa ser uma dádiva para a Comunhão Anglicana. Somos profundamente gratos ao Arcebispo de Cantuária por sua visão de como nosso trabalho poderia ser útil numa época em que uma comunidade que honra as diferenças e que aprende com elas pode ser um sinal de esperança para um mundo dividido.

Revmo. Frank T. Griswold, Bispo Primaz – Igreja Episcopal dos Estados Unidos da América

Menção favorável ao relatório sobre sexualidade humana

O documento abaixo é o resultado de um enorme esforço para unir os anglicanos para que se ouvissem reciprocamente e partilhassem seus pontos de vista sobre a sexualidade humana. Ele surgiu na Conferência de Lambeth de 1998 e agradeço muito ao Bispo Primaz da Igreja Episcopal dos Estados Unidos por ter presidido o grupo de trabalho cujas discussões estão resumidas neste relatório.

Sem dúvida, o texto desapontará a grande maioria dos anglicanos que acreditam que a prática da homossexualidade é inerentemente errada. Desapontará também os homossexuais da Comunhão que continuam a se sentir marginalizados, mal compreendidos e caluniados, e aqueles que, com esses, pedem uma mudança de opinião e de diretrizes acerca do assunto.

Entretanto, o grupo de trabalho não foi formado com a intenção de resolver necessariamente os desacordos entre nós, e sim de aprofundar o diálogo e de encontrar meios de reunir teologia, experiência e atenção pastoral. O resultado do colóquio demonstra aquilo que está envolvido no diálogo – um encontro entre pessoas com sentimentos, princípios, esperanças e medos reais. Demonstrou que uma alternativa é possível – um método de trabalho conjunto a respeito de questões difíceis que encontramos como igreja. Aprecio particularmente esse método face-a-face e desejo recomendá-lo a todos os líderes da Comunhão. Diálogo não é um expediente através do qual simplesmente persuadimos os outros. Dialogamos para esclarecer onde os mal-entendidos podem estar; para nos aprofundarmos nas razões que nos levam a adotar esta ou aquela posição a respeito de certos assuntos; e para apreciar melhor (embora possamos não concordar com elas) as razões pelas quais alguns pontos de vista diferem radicalmente do nosso. Dessa forma, nossa mais intensa busca da verdade não se separa da comunhão necessária para que a verdade venha a emergir.

Sua Graça Revmo. George L. Carey, Arcebispo de Cantuária

Após a Conferência de Lambeth de 1998, nós, bispos de diferentes Províncias da Comunhão Anglicana, fomos convidados pelo Arcebispo da Cantuária para uma série de colóquios a respeito da sexualidade humana. De acordo com a recomendação do Arcebispo, nosso objetivo era “ajudar toda a Comunhão a caminhar a partir da resolução de Lambeth”. Trouxemos para nossos colóquios ampla margem de experiências pessoais e culturais, assim como de convicções teológicas. Encontramo-nos anualmente nos últimos três anos por um período de quatro dias. Relacionamos abaixo todos os que estiveram presentes nas reuniões.

Revmo. Simon Chiwanga, Bispo de Mpwapwa – Presente no 1º. e 2º. anos

Revmo. Terence Finlay, Bispo de Toronto – Presente no 1º. e 2º. anos

Revmo. Frank Griswold, Bispo primaz dos EUA – Presente no 1º.,2º. e 3º. anos

Revmo. Roger Herft, Bispo de Newcastle – Presente no 2º. ano

Revmo. Josiah Idowu-Fearon, Bispo de Kaduna – Presente no 1º. 2º. e 3º. anos

Revma. Chilton Knudsen, Bispa do Maine – Presente no 1º. 2º. e 3º. Anos

Revmo. Peter Kwong, Arcebispo de Hong Kong – Presente no 1º. e 2º. Anos

Revmo. Glauco Soares de Lima, Bispo Primaz do Brasil e Bispo Diocesano de São Paulo – Presente no 1º. 2º. e 3º. Anos

Revmo. John Lipscomb, Bispo do Sudoeste da Flórida – Presente no 1º. 2º. e 3º. anos

Revmo. Michael Scott-Joynt, Bispo de Winchester – Presente no 1º. 2º. e 3º. anos

Revmo. Peter Watson, Arcebispo de Melbourne – Presente no 1º. 2º. e 3º. anos

Revmo. Rowan Williams, Arcebispo de Gales – Presente no 2º. ano

Quando chegamos à conclusão de nossa reunião final, atingimos mais intensamente, mediante o contato recíproco, a estima pela Comunhão Anglicana e o apreço por ela como dádiva de Deus. Reconhecemos que nossa comunhão mútua está baseada na fé cristã compartilhada, na palavra, nos sacramentos e em nossas orações comuns. Com humildade, chegamos ao conhecimento de que, assim como já somos uma Comunhão, também estamos em processo de nos tornar uma Comunhão num sentido mais pleno e profundo, mesmo quando nos deparamos com questões difíceis.

Passamos a entender que nossas diferenças de cultura, língua, história e eclesiologia enriquecem nossa vida comum. Também reconhecemos que nossa diversidade requer que tenhamos um alto grau de paciência uns com os outros, na medida em que vivemos dentro de múltiplos contextos nos quais exercemos nossa fé como membros da Comunhão Anglicana.
Não subestimamos a gravidade que assume para a Comunhão o desafio de algumas pessoas para que sejam modificados nossos ensinamentos tradicionais sobre a sexualidade humana. Durante nossos colóquios, notamos o receio de alguns membros de nossa Comunhão de que qualquer mudança nos ensinamentos recebidos poderia se tornar obrigatória e, portanto, comprometer a consciência de muitos.

Regozijamo-nos com o fato de que a controvérsia crítica a respeito do comportamento homossexual – que nos uniu para esses três colóquios – tenha nos servido para o aprofundamento de nossas inter-relações. Descobrimos que partilhamos muitos pontos de convergência, ao passo que reconhecemos que há ainda pontos críticos de discordância em nossa vida e ministério como bispos da Igreja.

Como ponderamos na Conferência de Lambeth de 1998, acreditamos que o processo “legislativo” é um modo frequentemente inadequado de discernir a vontade de Cristo a respeito de alguns problemas com que nos deparamos à medida que continuamos a crescer como Comunhão de Igrejas.

A verdade nunca pode ser propriedade de uma determinada pessoa ou grupo dentro da Comunhão. É apenas quando continuamos em diálogo dentro do Corpo de Cristo que somos capazes de ouvir e de provar a manifestação do Espírito.

Cremos que a comunhão recíproca crescerá à medida que aprendamos a dizer a verdade no amor. Lamentamos que frequentemente tenhamos participado de meias verdades e respondido aos outros através delas. Nossos debates nos levaram a esperar uma comunicação mais aberta e mais honesta, o que nos ajudará a construir a vida de nossa confissão na comunidade de todo o mundo.

Comprometemo-nos a empenhar-nos arduamente na busca de abertura de uns para com os outros, ouvindo num espírito de boa-vontade e de amor. Acreditamos que o respeito por nossa Comunhão é evidenciado quando nós, como bispos, nos envolvemos num diálogo face-a-face, fora das fronteiras das províncias. Encorajamos conversas semelhantes, entre outras lideranças leigas e religiosas das províncias, em torno de questões vitais para nossa vida comum. A disciplina de buscar e de dizer a verdade é especialmente importante neste momento em que a informação flui livremente ao redor do mundo devido à tecnologia contemporânea. Essa experiência reafirmou nossa convicção a respeito da importância da comunicação face-a-face.

Nossos Colóquios levaram-nos a concordar a respeito dos seguintes pontos:

As Escrituras são o fundamento de todos os aspectos de nosso trabalho.
A polêmica deve centrar-se no comportamento homossexual, e não em pessoas homossexuais. Somos chamados a amar as pessoas homossexuais como somos chamados a amar quaisquer outras pessoas.

A homossexualidade é um fenômeno muito mais variado do que o simples nome sugere: não estão disponíveis “resultados seguros”, extraídos de pesquisas na área da medicina e de outras ciências, a respeito de suas origens, causação, etc. Mesmo se tais provas existissem, os cristãos não se esquivariam da responsabilidade de fazer julgamentos teológicos e éticos a respeito do tema.

A questão do comportamento homossexual e as divisões a que ele leva remetem-nos à necessidade premente de atenção à missão, assim como de consideração de outros problemas de alta prioridade para nossas Províncias.
É urgente que se façam, em todas as nossas províncias, trabalhos para o fortalecimento do compromisso no casamento e da fidelidade dentro dele.

Nossas falhas nessa frente enfraquecem nossa habilidade de falar com credibilidade com pessoas homossexuais ou a respeito do comportamento homossexual.

Reafirmamos o contido na Seção 5 do Relatório da Conferência de Lambeth de 1998 a respeito da sexualidade humana, que se refere a algumas manifestações da sexualidade – como a promiscuidade e qualquer tipo de comportamento sexual abusivo – que são totalmente contrárias aos princípios do Cristianismo.

Pelos fatos de o papel e a autoridade exercidos pelo bispo e de a interpretação de colegiado diferirem de Província para Província, há um potencial aumentado de divergências entre nós.

Reconhecendo nossa Comunhão Anglicana como um dom, não a queremos ver fragmentada. Permitir que ela fosse dividida pela questão do comportamento homossexual seria a suprema sexualização da Igreja, tornando a sexualidade mais poderosa ou mais digna de nossa atenção do que Deus.

Nossos Colóquios revelaram e esclareceram os seguintes pontos de desacordo:

Não fomos capazes de conseguir um ponto de vista comum a respeito de um padrão único de vida santa para as pessoas homossexuais.

Temos diferentes percepções a respeito do relacionamento entre a autoridade das Escrituras e aquelas da razão, da tradição e da experiência contemporânea.

Abordamos e interpretamos algumas passagens das Escrituras de formas diferentes.

Refletindo sobre nossas conversas, discernimos os seguintes frutos do nosso trabalho conjunto:

Ao passo que nossas diferenças permaneceram, o relacionamento entre nós fortaleceu-se e aprofundou-se. Na qualidade de seguidores de Jesus e de bispos amigos, ganhamos em afeição, apreciação e respeito mútuos.

Os Colóquios fortaleceram e esclareceram nossas diferentes convicções, em vez de diluí-las. Ajudaram-nos a entender mais plenamente os pontos de vista uns dos outros e suas origens.

Entre as condições que tornaram nossas conversas frutíferas, destacamos as seguintes:

O lugar central dado às Escrituras nos Colóquios e a disposição de todos os participantes a darem crédito à interpretação dos companheiros.

Cada reunião fundamentou-se na adoração a Deus e aconteceu em lugares devotados à oração, reflexão e hospitalidade.

O número de participantes foi suficientemente pequeno para apoiar e sustentar um sentido de comunidade.

Houve consistência nos comparecimentos.

No princípio, estabelecemos, em comum acordo, normas que guiassem nossas reuniões, o que assegurou uma atmosfera de confidência e de confiança.

Redescobrimos a importância de controlar nosso desejo de persuadir o outro para concordar com nossa posição.

Descobrimos em nossa experiência a importância da “caridade interpretativa”: imputar as melhores intenções aos colegas e a outros membros da Comunhão, expressando a melhor versão sobre eles, checando os dados (se possível, logo de início) antes de tirar conclusões.

Tivemos a liberdade de descobrir pontos de concordância e de divergência.

Conseguimos valorizar tanto o respeito, que nos permite desenvolver o que temos a dizer sem contradições, quanto o amor, que questiona claramente, de forma que pudemos juntos fazer novas descobertas. Esperamos que esse contexto possa ser mais amplamente repetido em outras ocasiões de reuniões entre Bispos – inclusive quando se encontrarem como Câmara de Bispos.

A facilitação de especialistas de fora do grupo foi essencial.

Três encontros, com espaços entre eles, nos permitiram digerir sobre o que ouvimos e partilhamos e refletir sobre isso.

Descobrimos por nós mesmos que este tipo de diálogo não é um esforço para influenciar os participantes para concordarem com uma posição específica. (Veja “Trinta teses sobre as respostas cristãs a pessoas de outras confissões”. Lambeth 1998, Seção II do relatório “Chamados para viver e proclamar as novas de Deus”.)

Apontamos os seguintes tópicos para posterior exploração:

A santidade – para cuja formação, encorajamento e ensino entendemos estar ligados através de Cristo – exclui ou inclui o comportamento homossexual dentro de relacionamentos comprometidos?

Em que se constitui o amor por pessoas homossexuais e o cuidado pastoral responsável com elas? Como pode operar a graça de Deus nesse contexto?

Como consequência de nossas discussões recomendamos o seguinte:

Deveria haver, em toda a Comunhão, oportunidades para diálogos estruturados contínuos em relação a questões difíceis. Esses deveriam envolver pessoas de todos os níveis dentro das Províncias – e entre essas – e deveriam ser orientados por regras consensuais, semelhantes às que auxiliaram nossos Colóquios.

As visitas de bispos a outras províncias deveriam ser exploradas para aumentar o entendimento dentro da Comunhão. Tais intercâmbios deveriam incluir o comparecimento em Sínodos e Convenções Provinciais.

Aqueles que propõem mudanças nos ensinamentos tradicionais a respeito da sexualidade humana e de outras questões importantes deveriam levar em conta as implicações ecumênicas e entre confissões e seu impacto sobre outras Províncias de nossa Comunhão.

É importante que os bispos entendam posições diferentes das suas.

Os bispos de toda a Comunhão poderiam ser encorajados a desenvolver uma “regra de vida” comum, como forma de fortalecer nossa fraternidade por todo o mundo.

Este documento está sendo respeitosamente apresentado por aqueles que participaram da discussão final, na esperança de que nosso trabalho conjunto possa ser útil à Comunhão Anglicana, a qual valorizamos profundamente. Oramos também para que Deus continue a usar nossa Comunhão como meio de reconciliar todas as coisas em Cristo.

Apêndice A: Regras estabelecidas em consenso pelo grupo

Respeitaremos a jornada de fé um do outro.

Ouviremos respeitosamente.

Faremos perguntas que permitam o avanço do diálogo.

Buscaremos ter interpretações pessoais flexíveis, assumindo a perspectiva do outro na explicação das questões.

Procuraremos aprender a partir do ponto de vista dos outros.

Manteremos o assunto em mente enquanto falarmos.

Não falaremos separada e individualmente pelo grupo a respeito das conclusões tiradas em conjunto.

Não repetiremos os comentários uns dos outros após deixarmos este ambiente. Somos livres para compartilhar nosso aprendizado sem atribuir sua autoria a determinados indivíduos. Pelo contrário, respeitaremos o caráter confidencial das afirmações dos outros.

Esclareceremos a natureza de nosso discurso. Pediremos esclarecimentos de boa-fé.

Traduzido por Maria de Lima Salum e Morais

Revisão teológica por Dom Glauco Soares de Lima