Maria na tradição da Igreja Anglicana

Rev. Jorge Aquino, ose [1]

Gostaria, antes de mais nada, de agradecer ao convite que me foi formulado para falar neste Congresso Mariológico Mariano, acerca de um tema tão importante. E porque sei que é um tema de suma importância, tenho também conhecimento do peso de minha responsabilidade e das minhas limitações. Preferi falar neste dia sobre a posição encontrada na Comunhão Anglicana e não especificamente nas Igrejas da Reforma. Assim o fiz por duas razões.
Em primeiro lugar, em função do pouco tempo que temos. Falar da presença e da ausência de Maria nas diversas tradições reformadas exigiria bastante tempo, o que inviabilizaria esta comunicação. Em segundo lugar, em função de nossa ignorância do tema, o que exigiria um aprofundamento nestas riquíssimas tradições, o que não seria uma tarefa fácil. Se considerássemos apenas a obra de João Calvino, estaríamos em apuros; quando somamos a esta, os textos de Lutero e dos demais reformadores, com certeza, estaríamos em maus lençóis. A tradição Anglicana, no entanto, possui em seu seio muito da tradição luterana e calvinista, o que pode facilitar a reflexão. Além do mais, há um dado pessoal que pode ser lembrado: é, para mim, muito mais familiar falar do anglicanismo.

O que é a Comunhão Anglicana e o espaço que Maria ocupa nesta Comunhão
A Comunhão Anglicana é um conjunto de 40 Províncias (Igrejas) autônomas e autocéfalas, espalhada em 164 países e que congrega atualmente cerca de 95 milhões de pessoas. Estas Províncias estão em comunhão com a Sé de Cantuária e possuem em comum uma história, uma espiritualidade, uma liturgia, um ethos, além de instâncias internacionais de extrema importância como a Conferência de Lambeth – que congrega a cada 10 anos todos os bispos anglicanos do mundo; a Reunião dos Primazes e o Conselho Consultivo Anglicano. Estas instâncias internacionais, contudo, não são deliberativas – uma vez que cada Província é autocéfala – mas trazem consigo um enorme poder espiritual e representativo.

Uma das marcas da Comunhão anglicana é o seu ethos inclusivo, compreensivo e diverso. Isto significa que os anglicanos optam por manter uma espécie de via média entre Roma e Genebra. Ou seja, dentro do anglicanismo existe a explícita e consciente tomada de posição por se manter a Tradição Católica da Igreja, ao lado da Tradição Protestante. O anglicanismo não nega os séculos de tradição que recebeu da Patrística e da Escolástica, mas também não rejeita o sopro renovador trazido pela Reforma protestante do século XVI. No anglicanismo as tradições litúrgicas e espirituais dos Pais da Igreja coexistem com as doutrinas reformadas da sola scriptura e da sola gratia.

Na prática, isto significa que algumas comunidades, ou até mesmo dioceses e Províncias, poderão se identificar mais com a tradição católica ao passo que outras se ligarão mais à vertente reformada. Historicamente, estas duas tendências ficaram conhecidas como Igreja alta e Igreja Baixa.

A prática histórica da Igreja Anglicana tem reservado um lugar especial para Maria. Este espaço reservado para a pessoa da Virgem em nossas comunidades, tem sido bem maior do que o espaço encontrado em outras comunidades da Reforma e pode ser percebido em pelo menos cinco fatos. Em primeiro lugar, a Igreja Anglicana, em todo o mundo, tem inúmeras paróquias e catedrais dedicadas à memória da Virgem. Poderíamos fazer referência, por exemplo, a St Mary’s Cathedral em Edinburgh, Escócia; à Igreja de St. Mary em Nackington, Inglaterra; a Igreja de St. Mar em Hong Kong; e tantas outras Igrejas e catedrais dedicadas à memória da mãe do Salvador. No Brasil, citamos as paróquias da Virgem Maria em Caxias do Sul, RS, e de Santa Maria em Belém, PA.

Um segundo fato que também merece nossa referência, é a prática muito comum em toda Comunhão Anglicana, de se dedicar pelo menos uma capela nas grandes igrejas e catedrais à memória da Virgem, e de se usar, nestes lugares, a figura de ícones marianos. É assim, por exemplo, na Catedral de Cantuária que possui no seu lado norte, a Capela da Bem-aventurada Virgem Maria.

Em terceiro lugar, devemos fazer referência também a presença de imagens da Virgem Maria em algumas igrejas anglicanas. Devemos registrar, contudo, que esta prática é encontrada apenas em paróquias fortemente anglo-católicas.[2] Como exemplo, podemos citar a presença de uma imagem conhecida como “Our Lady of Canterbury” na cripta da Igreja Catedral de Cristo, em Canterbury. No Brasil, até onde sei, esta prática é inexistente.

Uma outra prática, também comum à tradição anglo-católica de nossa Igreja, é a existência de lugares de peregrinação mariana, onde a pessoa da Virgem é lembrada e seu exemplo é vivido. Podemos fazer referência, por exemplo, à capela de Nossa Senhora de Walsingham, na Inglaterra, e que recebe desde 1061, anualmente milhares de pessoas que vão até lá lembrar da dedicação da Virgem ao Senhor e agradecer a Deus por ela.

Finalmente, não podemos deixar de mencionar as muitas comunidades religiosas de espiritualidade mariana que existem em todo o mundo. À semelhança da Irmandade Evangélica de Maria, uma comunidade luterana que existe em Curitiba e que se iniciou na Alemanha, a Comunhão Anglicana possui inúmeras comunidades, monásticas ou não, mistas ou não, celibatárias ou não, em que a pessoa de Maria é vista como exemplo e padrão de espiritualidade. Na Inglaterra podemos encontrar várias delas, dentre as quais destacamos: The Community of Our Lady & Saint John, The Community of St Mary the Virgin, The Community of Blessed Lady Mary, e The Congregation of the Sisters of the Visitation of Our Lady.

Onde encontramos a “teologia” da Igreja Anglicana?

É comum dentro da Comunhão Anglicana afirmar que nós não temos uma teologia oficial. Os luteranos estão muito ligados à pessoa e às ideias de Martinho Lutero; os presbiterianos e reformados se auto-intitulam “calvinistas”; o “tomismo” já teve (ou tem?) um certo status dentro da Igreja Romana, mas o anglicanismo jamais pretendeu ser “luterano”, “calvinista” ou “tomista”. Na realidade as três correntes (e muitas outras) existem no seio do anglicanismo. A Igreja, contudo jamais, se autodefiniu como sendo seguidora “deste” ou “daquele” teólogo. Quando nos perguntam “no que” a Igreja Anglicana crê, normalmente apresentamos o Livro de Oração Comum, como um texto que contém nossa crença. A Igreja Anglicana crê como ora. Lex credendi lex orandi. E é assim, também quanto à pessoa da Virgem Maria. Se quisermos saber qual o lugar dado à mãe de nosso Salvador na Igreja Anglicana, devemos pesquisar, antes de tudo, o LOC.[3]

A pessoa da Virgem Maria no LOC

Além de ser obviamente mencionada dominicalmente na recitação do Credo Apostólico ou no Credo Niceno, o Livro de Oração Comum faz referência à Virgem em outras ocasiões: particularmente no Calendário, nos Próprios e nas Orações Eucarísticas. Vejamos cada uma destas referências.

No calendário do atual LOC[4], encontramos três datas dedicadas a Maria. A primeira é a festa da Anunciação da Bem-aventurada Virgem Maria, comemorada no dia 25 de março. A segunda é a festa da Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria, comemorada dia 31 de Maio, e a terceira é a festa da Bem-aventurada Virgem Maria, celebrada no dia 15 de agosto. Devemos ressaltar que além destas datas, os antigos Livros de Oração Comum da Província do Brasil falavam de uma outra festa chamada de “Purificação da Virgem Maria” celebrada no dia 02 de fevereiro[5] e que, mais tarde, passa a se chamar de “Apresentação de Nosso Senhor Jesus Cristo no Templo”.

Os Próprios lidos nestes dias nos dão uma pista do papel que a Virgem Maria desempenha na teologia anglicana. O primeiro próprio, lido no dia 25 de março, contém a seguinte oração:

Suplicamos-te, Senhor, que dotes com tua graça os nossos corações, para que, assim como pela mensagem de um anjo à Virgem Maria havemos conhecido a encarnação de teu filho Jesus Cristo, também por sua paixão e cruz sejamos levados à glória de sua ressurreição. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o Espírito santo, um só Deus, agora e sempre. Amém. [6]

O segundo próprio que menciona a Virgem Maria é o de 31 de maio, dia da Visitação da Bem-aventurada Virgem, e que diz o seguinte:

Ó Pai Celestial, por cuja graça uma virgem pura foi escolhida e abençoada para ser mãe de teu Filho, Jesus, mas muito mais abençoada em ter ouvido e guardado tua palavra; concede, a nós que honramos a exaltação de sua humildade, sigamos o exemplo de sua devoção à tua vontade. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o Espírito santo, um só Deus, agora e sempre. Amém. [7]

Finalmente o próprio do dia 15 de agosto que nos diz:

Ó Deus, que chamaste à tua presença Maria, bem-aventurada mãe de teu Filho Encarnado, por cujo sangue fomos redimidos; concede-nos participar com ela na glória do teu eterno reino, por Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o Espírito santo, um só Deus, agora e sempre. Amém. [8]

Nas Orações Eucarísticas

Ela é mencionada na oração eucarística do Rito II, quando se diz acerca do filho

“Tu O enviaste para assumir a carne humana, nascer da Virgem Maria e ser o Salvador e Redentor do mundo”. [9]

E também aparece no corpo da Grande Oração Eucarística B que diz:

“Ó Pai, de tal maneira amaste o mundo que, na plenitude dos tempos, enviaste teu único Filho para ser nosso Salvador. Feito carne pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria e viveu como um de nós, mas sem pecar”. [10]

Ainda nesta mesma Oração, a Virgem aparece uma segunda vez ao se dizer:

“E concede que participemos da herança dos Santos, [com a Bem-aventurada Virgem Maria, os Patriarcas, Profetas, Apóstolos e Mártires (e com NN)] e com todos os que tiveram o teu favor nos tempos passados”. [11]

As últimas referências feitas à Virgem Maria no LOC se encontram nos lecionários dominicais e diários dos Dias Santos[12], acompanhadas com as respectivas leituras da Escritura.

A Virgem Maria no Hinário Anglicano

O Hinário Anglicano possui poucas músicas que fazem referência à Mãe do Salvador. Estas músicas normalmente são indicadas para os momentos litúrgicos que celebram os eventos da história da salvação (p.e. Natal e Epifania) ou são músicas que apresentam a mãe do salvador ao lado dos apóstolos e demais santos em louvor ao Trino Deus ou a Cristo. Como exemplo deste tipo de Música, citamos a terceira estrofe do hino 218 que diz:

“Ó Virgem Mãe do Redentor,

Cheia de graça, em seu louvor

Também cantas – aleluia!

Lá nas alturas entre os anjos,

Na companhia dos arcanjos:

Aleluia! Aleluia! Aleluia! Aleluia! Aleluia!”

Dentre os hinos que podemos citar como exemplos apropriados para as festas litúrgicas, citamos o de nº 107 do Hinário Episcopal, de autoria do Rev. Henrique Todd Júnior, que é apropriado para a festa da anunciação e que nos diz o seguinte:

Honra demos a Maria, Virgem bem-aventurada.

Adoremos a seu filho, luz do céu a nós mandada.

Deus-menino veio à terra, Virgem-Mãe lhe deu beleza.

Fez-se carne o eterno Verbo, Nossa é dele a natureza.

Honra ao filho de Maria! Em seu lar de piedade,

Nem pobreza, nem fadiga, Nele impedem a bondade

Seu amor à mãe bendita é constante, puro e forte;

Se deveres os separam, nela pensa até na morte.

Toda a glória ao Pai se oferte, toda a glória ao Filho seja,

Toda a glória ao Parácleto – cante sempre a santa Igreja.

Essa mesma trilogia, lá no céu Maria entoa,

Repetida pelos santos, pela terra inteira ecoa!”

Um resumo

Alguém já disse que “quem procura um santo busca um exemplo”. É assim que a Virgem Maria é vista na Comunhão Anglicana. Como um exemplo em muitas áreas da vida, ela é, primeiro, exemplo de humildade. Ao ser confrontada com o Anjo ela reconhece sua condição humana e fala de sua indignidade. Maria nos dá um grande exemplo. Nos mostra que Deus pode “encher de graça” aqueles que dela necessitam. Martinho Lutero, em seu comentário do Magnificat, explicando porque traduziu a palavra “humildade” por “nulidade” ou “ser insignificante”, nos diz que Maria pretendia dizer o seguinte:

Deus olhou para mim, uma moça pobre, desprezada e insignificante. Ele poderia ter escolhido ricas importantes, nobres e poderosas rainhas, filhas de príncipes e grandes autoridades. Poderia muito bem ter escolhido a filha de Anãs ou Caifás, que teriam sido os maiorais do país. Porém ele olhou para mim, por pura bondade e usou para este fim uma moça humilde e desprezada. Diante dele ninguém deveria vangloriar-se de ter sido digno disso. Também eu tenho que confessar que se trata de pura graça e bondade. Não há merecimento ou dignidade nenhuma de minha parte. [13]

Para Lutero, Maria, que é chamada por ele de “a doce virgem”, não se vangloria de sua dignidade e nem tão pouco de sua indignidade, mas somente do olhar gracioso de Deus sobre ela. Segundo o reformador alemão,

ela não se envaideceria de sua virgindade nem de sua humildade, mas apenas da graciosa observação divina. Por isso, nos diz Lutero, a ênfase não está na palavrinha ‘humildade’, mas em ‘contemplar’. Não é sua humildade que deve ser louvada, mas a atenção por parte de Deus. Como quando um príncipe estende a mão a um mendigo: não se elogia nulidade do mendigo, mas a misericórdia e a bondade do príncipe.[14]

Maria é também vista como exemplo de desprendimento. Poderíamos até especular (e sei que isto já foi feito) sobre o que teria acontecido se ela tivesse rejeitado a proposta de Deus. Mas o dado é que ela abraçou o convite de Javé e, ao fazer isso, disse não a sua própria vida, a seus projetos, a seus sonhos, a tudo o que havia imaginado com seu marido. Ela estaria eternamente ligada àquele que seria seu Filho e Salvador do mundo e à sua Missão.

Em terceiro lugar ela é apontada como exemplo de submissão. Ela disse: “Eis aqui a serva do Senhor. Cumpra-se segundo a sua vontade”. Ela era uma mulher submissa ao seu Deus e como tal, se apresenta para servir às ordens de Deus, com tudo o que tem: sua vida!

Ela é também exemplo de santidade. Ser “santo” significa ser “separado”, “dedicado” para algo ou alguém. E Maria era assim: dedicada com todo o seu corpo e alma a Deus e ao seu propósito.

Maria é, também, vista como a mais Bem-aventurada de todas as mulheres. Por ser a mãe do Salvador; por receber em seu ventre o Verbo da vida; por amamentar aquele que nos sustenta com sua mão; por cuidar daquele que cuida de nós. O que ela presenciou, viveu, sentiu, contemplou, nunca jamais poderá ser feito por outra mortal. Ela, mais do que qualquer outra é, sim, Bem-aventurada!

Em resumo, podemos assumir tudo o que foi dito por Karl Barth quando ele assim se expressa: “Maria é um fator indispensável na proclamação bíblica pela ausência da ênfase em sua pessoa, pelo significado infinito de sua modéstia e humildade, de quem só recebe a bênção”. [15] De acordo com esta leitura, sua grande marca é, nas palavras do Bispo Sumio Takatsu, “A vida oculta em Cristo, sem aparecer no primeiro plano e nem no ‘kerygma’ apostólico”.[16]

Pontos de tensão

Depois do que foi dito, é bom falar um pouco dos pontos de tensão existentes entre nossas tradições. Primeiro, reflitamos sobre o culto. Os anglicanos fazem um culto centrado na Trindade. Do início ao fim do culto há inúmeras referências à Santíssima Trindade. Nosso louvor, nossa adoração e nossas orações são todas feitas em direção a Deus, pela mediação de Jesus Cristo. A prática de se dirigir orações a Maria ou aos demais santos é inexistente na Igreja anglicana. Nossa compreensão das Escrituras só nos autoriza orar a Deus. Em função da doutrina da Comunhão dos santos, contudo, não há problemas em se aceitar que os Santos na glória orem e intercedam pela Igreja Militante, contudo esta oração é vista como uma intercessão no sentido lato ou genérico, e não no sentido estrito ou específico. Esta leitura compreende que, mesmo na glória, os santos continuam sendo ontologicamente seres humanos e, como tal, desprovidos de onisciência ou onipresença. Não cremos, portanto que os santos possam tomar ciência das orações que lhes são dirigidas (muitas delas mentais) pelos fiéis na terra.

Um segundo ponto de tensão diz respeito aos chamados dogmas marianos. Existem quatro dogmas marianos aceitos na Igreja romana: o dogma da Maternidade Divina, a Virgindade Perpétua, a Assunção e a Imaculada Conceição. Estes dogmas são, via de regra, e em bloco, questionados pelas denominações protestantes mais jovens. Contudo, a medida em que retrocedemos no tempo, quase todos são compreendidos e aceitos, se lidos dentro de uma outra ótica. Quanto ao primeiro dogma, o da Maternidade Divina, ele é recebido sem qualquer dúvida, por todas as Igrejas da primeira Reforma (Anglicanos, Luteranos e Calvinistas) quando lido dentro do seu contexto original. A compreensão reformada entende que a fórmula teotokos surgiu dentro de um debate cristológico e não mariológico. Assim sendo, as Igrejas da Reforma não possuem qualquer dificuldade de acreditar, e proclamar, que Maria não foi mãe de mero homem, mas mãe de Deus. Ela não levava em seu ventre alguém que possuía apenas a natureza humana, mas era Portadora de Deus. O Verbo divino repousava em seu ventre. A leitura reformada, em geral, e anglicana, em particular, compreende que o contexto da declaração aponta para um resgate da dignidade do Filho e não da mãe.

O segundo dogma apresenta um componente maior de dificuldade para os reformados. A leitura comum entre os membros da família protestante histórica é que houve um tratamento equivocado com a palavra “virgem”. Há, no Antigo Testamento, uma profecia acerca da “virgem que conceberá e dará a luz a um filho”. Todos os cristãos, independente da tradição, compreendem que este verso se refere ao nascimento de Jesus. Mas o que se coloca é que a palavra “virgem” surge no contexto hebraico e é transferida sem qualquer advertência para o contexto grego onde será, mais tarde, transformado em dogma.[17] Explico. Segundo os exegetas a palavra hebraica usada para “virgem” significa apenas “jovem” ou “moça”. Com isso não se quer dizer que Maria não era “virgem” no sentido “físico” mas apenas que era uma “jovem” que daria a luz ao salvador. As duas verdades obviamente estavam ligadas. Esta visão judaica foi esquecida e uma outra interpretação ou leitura (agora grega) será usada para ler a palavra “virgem”. Entre os gregos, a virgindade se associava mais com a ideia de alguém “intocado” ou mesmo “sem mácula para o sacrifício”. A chave hermenêutica grega não observa mais a juventude, mas o estado físico. Em função dessa apropriação do texto bíblico a partir de uma ótica helênica, a Igreja sempre afirmou a virgindade de Maria. Dentro dos arraiais reformados históricos, e isto inclui os anglicanos, os textos teológicos e/ou litúrgicos oficiais, sempre se referiram a Maria como a Virgem Maria. Entendo, todavia, que a leitura protestante da virgindade de Maria não passa pelo contexto fisiológico (até porque os protestantes sempre compreenderam que Maria teve outros filhos), mas é visto pelo contexto da pureza e da castidade. Marcas que cremos, ela sempre preservou. A simples associação do sexo com a impureza é hoje rejeitada entre os protestantes. O argumento mais forte entre os reformados, contudo, me parece ser o exegético. Este texto de Isaías, diz a tradição protestante, ressalta o Filho de Deus e não o papel da jovem que conceberia. Na história de Israel inúmeros homens foram chamados por Deus para um papel especial e é surpreendente notar que a marca de seu chamamento foi a miraculosidade de seu nascimento. Foi assim com Isaque, Samuel, Jacó, Esaú, Sansão, João batista, etc. o fato de terem todos eles mães incapazes de gerar apenas exaltava o filho como alguém enviado por Deus para uma missão especial. O dogma da virgindade de Maria também exalta, portanto, o Filho. Quanto ao dogma da Assunção de Maria, ele é universalmente rejeitado entre os reformados, mas “relido” entre alguns anglicanos. Para um segmento do anglicanismo, a assunção de Maria ao céu é aceita e vista como um quadro que descreve o que ocorreu com todos os que morreram em Cristo e que deverá acontecer com todos os demais cristãos. Sim, afirmamos que Maria foi assunta aos céus e que foi coroada. Mas, por um lado, negamos que sua assunção tenha sido corporal e, por outro, afirmamos que ela recebeu a coroa que todos os cristãos também receberão. É por isso que o próprio deste dia faz referência ao fato de ter sido ela “chamada” a presença de Deus, o que ocorrerá com todos nós.

O último dogma é universalmente rejeitado pelos reformados. A leitura comumente aceita entre as famílias protestantes, e isto inclui os anglicanos, é que Maria também possuía a mácula do pecado original e que, como tal foi perdoada e salva pela morte vicária e expiatória de Jesus. Ela não era “cheia de graça” como nos fazia crer o texto da Vulgata, (que inspirou a reflexão escolástica), mas, “agraciada”, como se lê mais corretamente no texto grego. Ou seja, a leitura reformada encontra em Maria um receptáculo da graça que a atinge imerecidamente e não alguém que possui, por causa da ausência da mácula original, graça em si mesma.

Na realidade, os anglicanos (assim como os reformados e ortodoxos) entendem que estes dois últimos dogmas possuem três grandes problemas. O primeiro problema é a falta de catolicidade do testemunho da Igreja. Assim como encontramos autores que defendem ambos os dogmas, encontramos também Pais da Igreja que jamais assinariam estas declarações. Ou seja, a Imaculada Conceição e a Assunção Corporal nunca foram universalmente aceitos pelo testemunho inequívoco da Igreja, existindo este ultimo dogma apenas em textos pseudo-epigráficos e em lendas antiquíssimas.

O segundo problema é a falta de catolicidade na proclamação destes dogmas. Segundo o entendimento anglicano (e também reformado e ortodoxo), estes dogmas representam a declaração de uma parcela da Igreja Católica de Cristo, à medida que apenas a Igreja Romana assim compreende, define e aceita. Ficaram de fora da discussão todas as demais tradições cristãs. Tanto as famílias ortodoxas quanto os cristãos reformados deveriam estar presentes para que estas formulações tivessem poder católico ou universal. Todos os principais teólogos do século XX fizeram referência a estas duas declarações dogmáticas como complicadores para o diálogo ecumênico. É claro que na base desta discussão está o conceito O terceiro problema é a redação impositiva do texto da Bula Ineffabillis Deus. De acordo com o documento do Papa Pio IX, esta doutrina “deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis”. Exigir a crença na Imaculada Conceição aos “fiéis” implica em impor um julgo muito pesado sobre o restante da cristandade, além do que, entende os anglicanos, em um juízo de valor extremamente forte e contundente, que apenas contribui para cindir mais a ferida que existe no Corpo de Cristo.

Lamentamos que a figura da Virgem Maria seja completamente e deliberadamente esquecida na maioria das comunidades que surgiram em decorrência da Reforma protestante do século XVI. É nossa convicção, no entanto, que a Bem-aventurada Virgem Maria ocupa um lugar especial na Comunhão anglicana. Ela é honrada como Bem-aventurada; honrada como Virgem e como Mãe de Deus. Mas, como diz o Rev. Luiz Caetano Teixeira, “a evocação de Maria entre os anglicanos, em sua maioria, é no sentido de tê-la como referência e modelo, mas não como advogada ou co-operadora na Graça”. [18]

Conclusão

Como vimos, há, entre os anglicanos e entre os cristãos reformados, um espaço relevante que é dedicado à pessoa da virgem Maria. No entanto, este espaço tende a ser menor do que aquele que é dado pela igreja romana. Vimos também que no anglicanismo e nas demais igrejas reformadas, os santos em geral, e Maria, em particular, são exemplos de vida para todos os cristãos. O maior exemplo desta postura dentro da liturgia anglicana é a oração adicional presente à página 208 do LOC que diz o seguinte:

Ó Deus, Rei dos Santos, nós te louvamos e glorificamos teu Santo Nome por todos os teus servos que já encerraram sua carreira em tua fé e temor; pela bendita virgem Maria; pelos santos patriarcas, profetas, apóstolos e mártires; e por todos os demais teus servos justos, tanto os conhecidos como os desconhecidos; e te rogamos que nós, estimulados por seus exemplos, ajudados por suas orações e fortalecidos por sua comunhão, sejamos também participantes da herança dos santos em luz; pelos merecimentos de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém”. [19]

Esta citação nos coloca diante de um resumo do que afirma a tradição anglicana. Os santos são vistos como exemplos que fortalecem nossa vida e como intercessores (mesmo que orem genericamente) junto ao Pai. Esta doutrina tem base, acima de tudo, na doutrina histórica da “comunhão dos santos” e possui uma vasta aceitação em todos os seguimentos da comunhão anglicana.

Para concluir, devemos reconhecer que por trás de toda dificuldade que temos para sentar e refletir sobre os grandes temas da salvação, existe uma história cheia de ódio, de desamor, de intriga e de sofrimento. Não é fácil fazer com que estas parcelas separadas (pela falta de humildade) do corpo de Cristo reconheçam sua parcela de culpa na separação. Mas pelo menos devemos olhar para o Colégio Apostólico com outros olhos. Eles eram homens diferentes; com panos de fundo diferentes; origens diferentes e temperamentos diferentes. Mas eles tinham duas coisas em comum: o desejo de cumprir a Missão que seu Senhor lhes dera e a presença de Maria entre eles. Como uma mãe preocupada com o bem estar dos filhos, Maria nos dá a mesma orientação que deu àqueles que estavam nas bodas de Caná e que serve de texto base para este Congresso Mariológico Mariano: “fazei tudo quanto ele vos disser” (Jo 2:5). Se conseguirmos, ainda hoje, ouvir as instruções da Virgem, com certeza não faltará alegria (vinho) entre os convidados para a festa (do Reino). Que o exemplo da Bem-aventurada Virgem Maria nos inspire a todos e nos faça mais consagrados ao serviço da vida e da esperança.

Notas

1 Rev. Jorge Aquino, ose, presbítero da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, servindo à Diocese do Recife, como Arcediago da Paraíba e do Rio Grande do Norte. É membro da Ordem Evangélica de Santo Estevão Mártir.

2 Em uma matéria editada no Anglican World na festa da Trindade de 2001, há uma referência a cerimônia da bênção de uma imagem de Maria com o menino Jesus, realizada no dia 24 de abril, no College of Preachers (Catedral de Washington) pelo Arcebispo de Cantuária D. George Carey.

3 No Brasil normalmente chamados o Livro de Oração Comum pela abreviação LOC.

4 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 16

5 Esta designação ocorre desde o LOC de 1903 até o de 1950.

6 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 139

7 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 140

8 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 142

9 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 76

10 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 87

11 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 89

12 LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, p. 430, 431 e 506-508

13 LUTERO, M. O Louvor de Maria. São Leopoldo/ Porto Alegre, Editora Sinodal/Editora Concórdia,1999. p. 38

14 LUTERO, M. O Louvor de Maria. São Leopoldo/ Porto Alegre, Editora Sinodal/Editora Concórdia, 1999. p. 39

15 BART, Karl, Church Dogmatic. Vol. I, 2,p.140

16 TAKATSU, Sumio. Dogmas mariológicos e suas interpretações. In: ASTE – Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (Ed.). O Catolicismo Romano: um simpósio protestante. São Paulo: ASTE, s.d. p. 136

17 A palavra hebraica que significava “jovem” será traduzida na LXX por “virgem” e é aqui que surge o problema.

18 TEIXEIRA, Luiz Caetano G. A Bem-aventurada Virgem Maria no Anglicanismo. In Grande Sinal-Revista de Espiritualidade, Ano LII- 1999/2. Petrópolis, Instituto Teológico Franciscano, 1999, p. 144

19 Livro de Oração Comum p. 208, 209

Bibliografia

LUTERO, M. O Louvor de Maria. São Leopoldo/ Porto Alegre, Editora Sinodal/Editora Concórdia, 1999

MOSS, Claude B. The Christian Faith: an introduction to dogmatic theology. London, SPCK, 1961

NEILL, Stephen. El anglicanismo. Madri. Iglesia Española Reformada Episcopal, 1986

LIVRO DE ORAÇÃO COMUM -: Forma abreviada e atualizada com Salmos litúrgicos. Porto Alegre, Igreja Episcopal do Brasil, 1987

HINÁRIO Episcopal. Porto Alegre, Publicadora Ecclésia, 1962

TAKATSU, Sumio. Dogmas mariológicos e suas interpretações. In: ASTE – Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (Ed.). O Catolicismo Romano: um simpósio protestante. São Paulo: ASTE, s.d.

TEIXEIRA, Luiz Caetano G. A Bem-aventurada Virgem Maria no Anglicanismo. In Grande Sinal – Revista de Espiritualidade, Ano LII-1999/2. Petrópolis, Instituto Teológico Franciscano, 1999.